Nasci e permaneci na cidade de Balsas até
os dezesseis anos de idade. Cidade
pequena do sul do Maranhão, família aparentemente católica – digo isso com
muita propriedade: meu pai era neto de padre; isso mesmo, neto de um padre que por
volta de 1910 causou um dos maiores escândalos da época ao engravidar minha
bisavó entre o povoado Santa Tereza e São Domingos do Azeitão. Nem sequer
podemos imaginar o alvoroço criado. Com certeza os fuxiqueiros do lugar enriqueceram
suas imaginações por bastante tempo com o fato. Hoje virou profissão e parece
que dar muito dinheiro!
Podia-se afirmar que minha avó paterna era
católica de nascimento e meu pai por descendência.
Minha avó materna era a única de casa que
rezava diariamente. Minha mãe era alheia a tudo. Quase tudo mesmo. Meu pai
sequer tocava em assunto de igreja; era mais chegado aos macumbeiros do
Maranhão. Esse foi o ambiente que convivi até seguir para a São Luis para
prosseguir nos estudos.
O sonho da minha avó materna era de que eu
me tornasse um padre. Pode? Ela só não sabia que depois de haver tomado ciência
da história da minha avó a única vontade que me deu de entrar no Seminário foi de
me vingar. Só que eu queria vingar engravidando a filha dos outros e assim,
quem sabe, perpetuar a história da vovó.
Recebi muita influência da minha avó
materna Esmeralda Bucar e como não havia maneira de fugir da religião católica
fui estudar em escola de freiras e depois fui transferido para o Seminário São
Pio X, todos contaminados da influência católica de que minha avó tanto
prezava. Parece que tudo daria certo no plano arquitetado por ela. Eu seria
mesmo um padre. Confesso que quase me deixei influenciar por isso.
No seminário, comecei a observar as
atitudes e maneirismos dos irmãos maristas que dirigiam o Colégio e também a
observar mais de perto o que fazia um padre de verdade. A história tem sempre
uma tendência a se repetir e me deparei com um padre que acabara de engravidar
uma jovem que trabalhava na Casa Paroquial. Pronto. Ali estava o maior atrativo
de que precisava para me tornar um padre. Fato acontecido, todo mundo ficou de
bico calado, inclusive nosso bispo D. Rino Carlesi (já falecido).
Minha tia Percides Mustafá que morava em
São Luis resolveu me dar a carta de alforria: levou-se para estudar na capital.
Ali me livraria definitivamente do sonho de ser padre, nem que fosse por um
dia.
Antes, algumas coisas não iam bem comigo.
Nasci quase sem condições de sobreviver e depois já quando garoto só vivia
doente. Muitas vezes fui tratado pelos únicos dois médicos do lugar e
praticamente de todo o Sul do Maranhão. Aliado a isso acontecia algumas outras
coisas comigo que de tão estranhas às vezes me diziam que estava ficando louco.
Pois é, vi pessoas na estrada da Fazenda Volta Grande bem no topo da ladeira e
que só eram vistas por mim e um outro primo que já faleceu. Apenas nós dois
víamos as pessoas. O que ele descrevia eu estava vendo. Da mesma forma
acontecia em relação a ele. Me sentia solitário, às vezes chorava, outras
apenas observava. Tinha um verdadeiro apego pelas pessoas que faleciam no
lugar. Acompanhava o enterro que quase todos eles. As vezes ria, às vezes
chorava sem motivo aparente. Isso realmente estava me perturbando
profundamente.
Certa vez estávamos sentados na porta de
casa conversando com vizinhos, pois era a novela das oito daquela época – não
havia televisão; - a energia funcionava a motor e das sete às dez da noite.
Aproveitávamos para colocar o papo em dia nas rodas de conversa de porta de calçada.
Minha mãe mandou-me apagar a luz da cozinha e eu prontamente atendi. Quando ia
apertar o plug para desligar a
lâmpada lembrei-me de verificar se a porta da cozinha que dá para o quintal
estava fechada e nesse momento observei a presença do Sr. Ângelo, morador
vizinho da Fazenda Barraca que era de meu pai. Lá estava ele em pé, com uma
camisa azul abotoada até próximo da caixa torácica, de chapéu de palha, chinelo
de dedo e sorriu para mim. Pessoa muito simples, educada, muito amiga de todos
nós. Confesso que ao vê-lo me arrepiei todo e tive um medo tão grande que saí
em disparada rumo à porta da frente de casa. Lá chegando fiquei quase sem fala
e muito pálido. O meu pai foi logo perguntando sobre o que havia se passado e
eu não conseguia falar naquele momento. Todos ficaram assustados e logo depois
conseguir contar-lhe o que havia visto. Eles saíram rapidamente em direção à
porta do quintal e conferindo por todos os cantos, inclusive chamando por ele e
iluminando com lanternas nada encontraram. Mais uma vez foi aquela humilhação
danada. Diziam: - esse moleque está inventando coisas. Como é que o Sr. Ângelo
iria entrar aqui em casa pela porta dos fundos? Esse menino está ficando doido, arrematou
minha mãe. Os vizinhos observavam atentamente e depois que a poeira baixou um
pouco ficaram eles nas suas conversas de oportunidade e eu fiquei sentado me
perguntando o porquê daquilo ter acontecido. Será que eu realmente estava
ficando louco? Comecei a achar que meus pais e especialmente minha avó estavam
com a razão.
Por volta de uma hora após o fato, chega em
passos apressados a filha mais velha do Sr Ângelo dando conta de que ele havia
acabado de falecer no Hospital São José. Até aquele momento sequer sabíamos que
ele havia dado entrada no hospital com algum tipo de doença. Foi chegando no
hospital e falecendo logo em seguida.
A despeito do recolhimento que todos
deveriam ter ficar após a notícia, confesso mesmo que fiquei contente.
Levantei-me da cadeira e comecei a falar em alta voz; - eu não disse que era o
Sr. Ângelo? Eu não falei que era ele? E agora o que me dizem?
Após acalmarem a filha do Sr. Ângelo
passaram a tergiversar sobre “coisas do outro mundo” e desta vez eu estava
inserido como alguém que era responsável ou pelo menos conhecedor daquelas
coisas. Já mudavam o tom dizendo que eu havia falado a verdade das outras vezes
que aconteceram fatos semelhantes. Começaram então a rememorar os casos de que
lhes contei e já nem lembrava mais.
Naquele momento senti que um peso enorme
acabara de ser retirado das minhas costas. Não era definitivamente um louco e
pronto!
Não foi exatamente isso que aconteceu!
Comecei a me questionar se determinadas pessoas que eu havia visto antes
estavam vivas ou mortas! Tomado de profundo medo, dormi aquela e outras tantas
noites na cama de meu pai: ele de um lado, minha mãe do outro e eu no meio.
Foi um martírio só. Para meu pai nem tanto.
Parece que ele sabia da possibilidade de se comunicar com os mortos. Só não
sabia como e eu não sabia o porquê. Passei a questionar tudo. Religião, bíblia,
Deus, enfim, tudo. Parece que todos os conceitos que estavam sendo construídos
ruíram todos de uma só vez. Isso era ruim por um lado, visto desgostar minha
avó e outras pessoas, porém, nasceu em mim um sentimento que me dava de certa
forma uma certeza que parecia já estar comigo há tempo. Angariei um primeiro
admirador: meu pai. Os olhos claros dele ficavam cada vez mais brilhantes
quando falava aos outras das minhas qualidades. Para ele era algo maravilhoso,
misterioso, bem nos moldes de que tanto acreditava.
Depois disso, mesmo sem compreender nada
ainda, chegou na minha casa à noite um motorista chamado Raimundo da Florência
que todos conheciam muito bem a me fazer convite para com ele levar uma senhora
que estava na rua Antonio Jacobina “possuída
de espírito” levá-la ao um rezador
que morava no lugar chamado Cachimbo para “dar um jeito nela”. Fiquei curioso e ao mesmo tempo com medo. Mais
para não decepcionar meu pai que entusiasticamente falava das “minhas
qualidades”, resolvi ir. Chegando na rua Antonio Jacobina era uma multidão de
vizinhos e curiosos para verem colocar essa mulher na carroceria de uma
antiga pick-up. Deu bastante trabalho até conseguirem afinal. Seguimos
para os Cachimbos, a mulher, Raimundo e eu. Chegando lá, estava no terreiro da
casa da fazenda um senhor com umas velas acesas e ao descermos do carro ele foi
logo dizendo que já estava esperando por nós. Falamos da dificuldade de colocar
a mulher na carroceria e trazê-la até ali amarrada, o que só havia conseguido
com a ajuda de seis homens e que para descê-la talvez fossemos necessitar de
ajuda. Sei apenas que ele se prontificou a fazer o serviço sozinho e subindo na
carroceria foi logo rezando e passando as mãos sobre a cabeça e a nuca da
mulher. Ora rezava, ora conversava. Retirada da carroceria, trouxe ela para
perto das velas que estavam postadas em círculo no chão. Colocando a mão
esquerda sobre a testa dela e a mão direita na nuca continuou a conversa. Notamos
que ela começou a falar, o que não havia feito antes. Para surpresa nossa dizia
ser um homem que morava em São Paulo e que havia sido vítima do incêndio do
Edifício Joelma. Declinou nome, falou do desespero, das preocupações com os
familiares que havia deixado, do medo de não vê-los mais, das incertezas da realidade
que ora se apresentava a ele no momento e da forma que havia falecido: preso
dentro de um elevador. Era o ano de 1974. Como não havia televisão e nem se
viam jornais pelo lugar, a não ser a revista O Cruzeiro que o professor Joca Rego recebia e os jornais atrasados
que o Dr Didácio Santos lia quando sua filha os remetia da capital do Estado,
as notícias atualizadas eram ouvidas pela Voz do Brasil e até aquele episódio
não havíamos tomado ciência do incêndio.
Após alguns dias da viagem aos Cachimbos,
sabedor do que havia se passado por lá por mera fofoca que meu pai fez ao
professor Joca Rego, este, como de costume, todas as tardes passava em frente à
minha casa nas caminhadas vespertinas que fazia diariamente e desta vez para
entra na casa de meus pais com uma revista O
Cruzeiro embaixo do braço esquerdo. Com o olhar de extrema admiração mostra
a capa e começa a folhear a revista mostrando a minha mãe, minha avó e meu pai
sobre o incêndio do edifício Joelma que havia acontecido há poucos dias e que morreu
muita gente. Foi um espanto só. Comovidos com o fato estarrecedor e admirados de
saberem desse desastre justamente por uma de suas vítimas, o professor arregalou
os olhos e meu deu algumas palmadas na cabeça e dizendo: - “esse menino é muito
inteligente, precisa ser estudado”. Ele, professor Joca Rego, católico convicto
diante da prova de um fato que de alguma forma ia de encontro com sua crença.
Meu pai procurou o Sr Raimundo do Banco,
espírita na cidade, talvez para falar-lhe sobre mim ou os fatos que eu
presenciara. Recebeu dele o maior presente que poderia receber: O Livro dos
Espíritos que teve a sua primeira edição lançada no Brasil no dia 15 de janeiro
de 1871. Chegando em casa meu pai mostrou-me o livro e disse que se eu quisesse
ler deveria apanhá-lo dentro do cofre, pois não era um livro para ficar
passeando por aí não. A Dona Esmeralda, disse ele quando se referia a minha
avó, vai excomungá-lo. Toda vez que eu quisesse ler o livro deveria apanhá-lo e
me esconder dentro de um dos quartos da
casa.
Foi a minha iniciação nos conhecimentos
espíritas. Mais precisava de mais alguma coisa.
Depois de muito tempo consegui ler o
complemento do Livro dos Espíritos que tratava a doença de que eu era vítima
com um novo nome: mediunidade. Conheci o Livro dos Médiuns. Nele encontrei a
parte prática que me faltava para educar a doença de que eu fora vítima. Era a
primeira vez que ouvi falar que uma doença deveria ser educada ao invés de
medicada.
Um livro importante para todos aqueles que
sofrem, de uma maneira ou de outra, das agonias da mediunidade deseducada, desequilibrada,
principalmente quando há interferências negativas de vertentes religiosas que reivindicam
para si o papel de sindicato das divindades.
Dia 15 de janeiro do ano de 1861 Allan
Kardec lança a primeira edição do livro dos Médiuns, facilitando a todas as
pessoas médiuns, estudantes, cientistas e a quem quisesse entender do fenômeno
que não é privilégio de espíritas, que mediunidade é tão somente um mecanismo
de comunicação que capta ondas mais sutis e que elas podem ser emanadas de
seres que já deixaram o corpo: os espíritos dos nossos mortos.
Com a mediunidade educada nos livramos
inclusive dos “religiosos de plantão”. Hoje sei que tenho apenas um aparelho de comunicações que algumas pessoas ainda não possui. Quando possuírem, saberão que existem outras estações de transmissões radiofônicas por todo o universo. Só isso!
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